Por Cecília Olliveira
Em 10 de Novembro de 2020.
‘NO BRASIL, NÃO HOUVE APARTHEID’.
Essa é uma frase comum de se ouvir vinda de quem quer explicar que, por estas bandas, não aconteceu nada similar ao que ocorrido na África do Sul ou nos Estados Unidos, onde a discriminação estava nas leis e em placas que segregavam pessoas negras. Escolas, empregos, votos. Preto sai, branco fica.
Quando assisti o documentário “13º Emenda“, minha sensação era: aqui também! Aqui também! O título se refere à emenda da Constituição dos EUA que aboliu a escravidão no papel. E só no papel. O documentário mostra como é a vida dos afroamericanos, analisando a correlação entre a criminalização da população negra e o boom do sistema prisional do país. E tudo o que vem no meio disso.
No Brasil, a gente caiu no mito da democracia racial, popularizado pós-período escravagista que cunhava a “paz entre as raças”. Essa ideia, junto com a fábula do “povo cordial”, consolidou a ideia falaciosa que o Brasil era uma espécie de “paraíso mestiço”. Muita gente ainda está enredada nesse conto de fadas. Isso fica particularmente evidente em novembro. O Apartheid à brasileira é assim: no discurso, democracia racial; na prática, açoite disfarçado de lei e ordem, como você lerá abaixo.
Caso de polícia
Em 1822, o Brasil declarava independência de Portugal, e o comércio escravagista entrava em declínio. Havia no Brasil muita gente preta na rua, sem emprego e com raiva por tudo o que havia sofrido. E isso apavorava as elites. Como conter essas pessoas?
Para começar a resolver o problema, foi publicado o Código Criminal do Império, de 1830. Ele estabelecia, ao mesmo tempo, o controle e regulação da vida de pessoas negras nas cidades e colocava obstáculos a insurreições ou revoltas. A insurreição foi criminalizada, e pessoas livres que encabeçassem os levantes eram punidas. A mendicância e vadiagem também viraram crimes. Imagine que você não tem nada, mas também não pode pedir. E nem perambular em busca de comida. A primeira Constituição, de 1824, também se fundou na escravidão.
Decreto nº 145, de 11 de junho de 1893, que determinava a prisão de mendigos, vagabundos, vadios capoeiras e desordeiros em colônias fixadas pela União ou pelos estados;
Decreto nº 3475, de 4 de novembro de 1899, negava o direito a fiança a réus vagabundos ou sem domicílio e autorizava incursões policiais sem controle judicial, especialmente em regiões onde havia mais negros.
Lei nº 4242, de 5 de janeiro de 1921, que fixou a idade penal aos 14 anos e autorizou a criação de um serviço assistencial às crianças abandonadas;
Código de Menores, de 1927, que criou a categoria do “menor infrator” – na prática, consistiu numa justificativa moral para reprodução de representações estereotipadas de meninos negros.
Já o Código Penal e Processual Penal de 1940 e 1941 nasce sob a luz do mito da democracia racial, da identidade nacional e tenta versar sobre igualdade, mas mantém a discriminação e a desigualdade.
No Rio, de 1938 a 1969, o número de presos condenados no sistema penitenciário passou de 3.866 (3.790 homens e 76 mulheres) para 28.538 pessoas (27.726 homens e 812 mulheres).
No Estado Novo, a Frente Negra Brasileira foi posta na ilegalidade; e ativistas negros; perseguidos e criminalizados. A capoeira e o candomblé eram fiscalizados e monitorados. Só neste ano, a Polícia Civil do Rio de Janeiro devolveu objetos sagrados para as religiões de umbanda e candomblé, apreendidos entre 1889 e 1945. E foi a primeira a fazer isso. Na ditadura militar, bailes e outras manifestações culturais da comunidade negra foram combatidos.
Com a Constituição Democrática de 1988, “segurança pública” passou a ser um direito social pela primeira vez. Mas, na prática, não deu um novo formato às polícias, que foram ficando cada vez mais militarizadas. A polícia seguiu agindo como agia antes da democratização, como grupos de extermínio. Há incontáveis casos, como as chacinas de Acari, Candelária e Complexo do Alemão, no Rio; no Crespo, em Manaus; em Messejana, no Ceará, além do massacre do Carandiru, em São Paulo. A maioria das vítimas desses massacres era negra.
Leia também:
O POVO: Mães de vítimas da Chacina do Curió seguem em busca de justiça (Chacina da Grande Messejana)
Em 2018, os negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios, mesmo sendo pouco mais da metade da população brasileira. Isso é ainda pior nas regiões Norte e Nordeste. Roraima foi o estado com a maior taxa: 87,5%. Em dez anos, assassinatos de negros aumentaram 11,5%. Os de não negros caíram 12,9%.
Os negros também são a maioria no sistema carcerário, cerca de 64%.
Um terço deles sequer foi condenado ainda, são presos provisórios. Muitos deles estão atrás das grades com base na lei de drogas, aprovada em 2006 e que não prevê critérios objetivos de diferenciação entre usuário e traficante.
A lei de drogas acabou por reforçar a ideia racista de Nixon, o ex-presidente norte-americano que instituiu e exportou essa política mundo afora. John Ehrlichman, o então chefe de política doméstica dos EUA, admitiu, em 1994, para o jornalista Dan Baum o real teor da política de drogas ao afirmar:
“Na campanha presidencial do Nixon em 1968, e depois na Casa Branca, nós tínhamos dois inimigos: a esquerda anti-guerra e as pessoas negras. Entendeu? Sabíamos que nós não podíamos criminalizar quem era anti-guerra ou negro, mas convencendo a população a associar hippies à maconha e negros à heroína, e depois criminalizando fortemente os dois, poderíamos desestabilizar ambas as comunidades. Poderíamos prender seus líderes, invadir suas casas, impedir suas reuniões e caluniá-los todas as noites nos jornais noturnos. Sabíamos que estávamos mentindo sobre as drogas? Claro que sim.”
Não há como descolar essa realidade de um sistema de investigação mambembe, que se escora no racismo, lá e cá. Mais recentemente, pessoas negras têm sido acusadas e condenadas com base em fotografias antigas, retiradas de redes sociais e que sequer deveriam estar de posse da polícia. Após vários “erros” serem divulgados, o STJ interveio e decidiu que reconhecimento por foto não serve para embasar condenação.
Mas como vimos ao longo dos anos, um canetaço não basta. Precisamos parar de acreditar que uma assinatura resolve as coisas. As pessoas que alimentam este sistema precisam ser responsabilizadas diretamente; e as políticas reparadoras, estabelecidas. O caminho ainda é longo.
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